Poesia: Fernando Pessoa - Antologia - Parte 17 - NADIE EN PLURAL - Álvaro de Campos - Tabacaria - Tabaqueria - Miguel Ángel Flores trad.

Posted by Ricardo Marcenaro | Posted in | Posted on 15:30




TABACARIA

N
ão sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe
quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?)
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr umidade nas paredes e cabelos brancos nos
homens
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada. Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa a este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,

Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser atnesma coisa que não pode haver
tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos
certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas —,
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas —,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha
razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.

Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de
uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,

Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que
comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno —não concebo bem o quê—,
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritus invocam espíritus invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejos os passeios, vejo os carros que passam.
Vejos os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
Vivi, estudei, amei, e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,

E penso: talves nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.

Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e
perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da alma mal-voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.

Ele deixará a tabuleta, eu deixarei versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de
coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra, Sempre o impossível tão estúpido como o real,

Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar
mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E contínuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou àjanela.

O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?)
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.





TABAQUERÍA

No soy nada.
Nunca seré nada.
No puedo querer ser nada.
A parte de eso, tengo en mí todos los sueños del mundo.

Ventanas de mi cuarto,
De mi cuarto de uno de los millones en el mundo que nadie sabe
quién es
(Y si supiesen, ¿qué sabrían?),
Dais al misterio de una calle cruzada constantemente por gente,
A una calle inaccesible a todos los pensamientos,
Real, imposiblemente real, cierta, desconocidamente cierta,
Con el misterio de las cosas bajo las piedras y los seres,
Con la muerte que mancha de humedad las paredes y hace
blancos los cabellos de los hombres,
Con el Destino que conduce la carroza de todo por el camino de
nada.
Estoy hoy vencido, como si supiese la verdad.
Estoy hoy lúcido, como si estuviese por morir,
Y no tuviese más hermandad con las cosas
Que la de una despedida, tornándose esta casa a este lado de la calle
La hilera de vagones de un tren, y el silbido de una partida
Dentro de mi cabeza,
Y una sacudida de mis nervios y un chirriar de huesos al arrancar.

Estoy hoy perplejo, como quien pensó y halló y olvidó.
Estoy hoy dividido entre la lealtad que debo
A la Tabaquería del otro lado de la calle, como cosa real por fuera, Y a la sensación de que todo es sueño, como cosa real por dentro.

Fallé en todo.
Como no hice ningún propósito, tal vez todo fuese nada.
El aprendizaje que me dieron,

Descendí por la ventana trasera de la casa.
Fui al campo con grandes propósitos.
Pero allí sólo encontré yerbas y árboles,
Y cuando había gente era igual a la otra.
Me retiro de la ventana y me siento en una silla. ¿En qué he de pensar?

¿Qué sé yo lo que seré, yo, que no sé lo que soy?
¿Ser lo que pienso? ¡Pienso ser tanta cosa!
¡Y hay tantos que piensan ser la misma cosa que no puede haber
tantos!
¿Genio? En este momento
Cien mil cerebros se piensan en sueños genios como yo,
Y la historia no señalará, ¿quién sabe? ni a uno,
No habrá sino un muladar para tantas futuras conquistas.
No, no creo en mí.
¡En todos los manicomios hay tantos locos deschavetados con tantas certezas!
Yo, que no tengo ninguna certeza, ¿soy más cierto o menos cierto?
No, ni en mí...
¿En cuántas buhardillas y no buhardillas del mundo
No están en esta hora genios-para-sí-mismos soñando?
¿Cuántas aspiraciones altas y nobles y lúcidas—
Sí, verdaderamente altas y nobles y lúcidas—,
Y quién sabe si realizables,
¿Nunca verán la luz del sol real ni hallaran oídos de nadie?
El mundo es de quien nace para conquistarlo
Y no para quien sueña que puede conquistarlo, aunque tenga razón.
He soñado más que Napoleón.

He abrazado contra el pecho hipotético más humanidades que Cristo.
Hice filosofías en secreto que ningún Kant escribió.
Pero soy, y tal vez seré siempre, el de la buhardilla,
Aunque no viva en ella;
Seré siempre el que no nació para esto,
Seré siempre sólo el que tenía cualidades;
Seré siempre el que esperó que le abriesen la puerta al pie
de una pared sin puerta,
Y cantó la cantiga del Infinito en un gallinero,
Y escuchó la voz de Dios en un pozo cegado.
¿Creer en mí? No, ni en nada.
Que me derrame la Naturaleza sobre la cabeza ardiente
Su sol, su lluvia, el viento que me despeina,
Y lo demás que venga si viene o que tenga que venir, o que no venga.
Esclavos cardíacos de las estrellas,

Conquistamos todo el mundo antes de levantarnos de la cama;
Pero nos despertamos y él es opaco,
Nos levantamos y es ajeno,
Salimos de casa y es la tierra entera,
Más el sistema solar y la Vía Láctea y lo Indefinido.

(Come chocolates, niña;
¡Come chocolates!
Mira que no hay más metafísica en el mundo que la de los chocolates.
Mira que todas las religiones no enseñan más que la confitería.
¡Come, niña sucia, come!
¡Si pudiera yo comer chocolates con la misma verdad con que tú
los comes!
Pero yo pienso y, al quitarles el papel plateado, que es de estaño, Arrojo todo al suelo, como tiré la vida.)

Pero queda al menos de la amargura de lo que nunca seré
La caligrafía rápida de estos versos,
Pórtico hendido hacia lo Imposible.
Pero al menos dedico a mí mismo un desprecio sin lágrimas,
Noble al menos por el gesto amplio con que arrojo
La ropa sucia que soy, sin motivo, para el decurso de las cosas,
Y me quedo en casa sin camisa.

(Tú que consuelas, que no existes y por eso consuelas,
O diosa griega, concebida como estatua con vida,
O patricia romana, imposiblemente noble y nefasta,
O princesa de trovadores, gentilísima y colorida,
O marquesa del siglo dieciocho, escotada y distante,
O cocotte célebre del tiempo de nuestros padres,
O no sé qué moderno —no concibo bien qué—,
Todo eso, sea lo que fuera, lo que sea, si puede inspirar ¡qué inspire!
Mi corazón es un balde vacío.
Como invocan espíritus los que invocan espíritus me invoco
Me invoco a mí mismo y nada encuentro.
Me acerco a la ventana y veo la calle con una nitidez absoluta.
Veo las tiendas, veo las aceras, veo los coches que pasan.
Veo los entes vivos vestidos que se cruzan,
Veo los perros que también existen,
Y todo esto me pesa como un condena al destierro,
Y todo esto es extranjero, como todo.)
Viví, estudié, amé y hasta creí,
Y hoy no hay mendigo al que no envidie sólo por no ser yo.
En cada uno miro los andrajos y las llagas y la mentira,

Y pienso: tal vez nunca hayas vivido ni estudiado ni amado ni creído
(Porque es posible hacer la realidad de todo eso sin hacer nada de eso);

Tal vez hayas existido apenas, como un lagarto a quien cortan la cola
Y que es cola más acá del lagarto que se retuerce.

Hice de mí lo que no supe,
Y lo que pude hacer de mí no lo hice.
Vestí un disfraz equivocado.
Me tomaron enseguida por quien no era, y no lo desmentí, y me
perdí.
Cuando quise arrancarme la máscara,
Estaba pegada a la cara.
Cuando la arrojé y me vi en el espejo,
Ya había envejecido.
Estaba borracho, y no sabía vestir el disfraz que no me había quitado.
Arrojé la mascara y dormí en el vestidor
Como un perro tolerado por la gerencia
Por ser inofensivo
Y voy a escribir esta historia para probar que soy sublime.

Esencia musical de mis versos inútiles,
quién pudiera encontrarte como cosas que yo hice,
Y no quedarme siempre enfrente de la Tabaquería de enfrente,
Pisoteando la conciencia de estar existiendo,
Como un tapete con el que tropieza un borracho
O la esterilla que los gitanos roban y no vale nada.

Pero el Dueño de la Tabaquería se asomó a la puerta y se quedó en ella.
Lo miro con la incomodidad de la cabeza torcida
Y con la incomodidad de una alma que mal entiende.
Él morirá y yo moriré.

Él dejará el letrero, yo dejaré versos.
Y un día morirá el letrero y también mis versos.
Después morirá la calle donde estuvo el letrero,
Y la lengua en que fueron escritos los versos.
Morirá después el planeta girante en que todo esto sucedió.
En otros satélites de otros sistemas cualquier cosa como nosotros
Continuará haciendo cosas como versos y viviendo debajo de las
cosas como letreros,
Siempre una cosa frente a otra,
Siempre una cosa tan inútil como la otra. Siempre lo imposible tan estúpido como lo real,

Siempre el misterio del fondo tan cierto como el sueño del misterio de la superficie,
Siempre ésta o aquella cosa o ni una ni la otra cosa.

Pero un hombre entró en la Tabaquería (¿a comprar tabaco?),
Y la realidad plausible cae de repente sobre mí.
Me incorporo a medias enérgico, convencido, humano,
Y voy a intentar escribir estos versos en los que digo lo contrario.

Enciendo un cigarro al pensar en escribirlos
Y saboreo en el cigarro la liberación de todos los pensamientos.
Sigo el humo como mi camino,
Y gozo, en un momento sensitivo y adecuado,
La liberación de todas las especulaciones
Y la conciencia de que la metafísica es la consecuencia de una
indisposición.

Después me reclino en la silla
Y sigo fumando.
Seguiré fumando hasta que el Destino me lo permita.
(Si me casase con la hija de mi lavandera
Tal vez sería feliz.)
Visto esto, me levanto de la silla. Me acerco a la ventana.

El hombre salió de la Tabaquería (¿guarda el cambio en el bolsillo del pantalón?).
Ah, lo conozco: es Esteves sin metafísica.
(El Dueño de la Tabaquería llegó a la puerta.)
Como por un instinto divino, Esteves se volvió y me vio.
Hizo una señal de adiós, le grité ¡Adiós, Esteves!, y el universo
Se reconstruye en mí sin ideal ni esperanza, y el Dueño de la Tabaquería sonrió.




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